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Livingstone mentiu: os portugueses foram os primeiros no coração de África

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A propósito da viagem de Livingstone, José de Lacerda analisou, pelos idos de 1867, de forma tão minuciosa como exaustiva, a expedição do missionário inglês, rectificando grande número de asserções e contestando muitas das suas supostas descobertas geográficas. O livro intitulado “Exame das Viagens do Doutor Livingstone” pretendia vingar o bom nome português e reforçar a posição histórica da nação que ao longo dos séculos marcara presença no mundo.

Nação marítima por excelência, potência atlântica, no xadrez político internacional de meados do século XIX, Portugal, jogava a sua ofensiva, na luta pela permanência no território africano. A diferenciá-lo tem a singularidade da sua história e a beneficiá-lo a posição geográfica propícia à abertura marítima. Precoce no desbravamento dos mares, já no século XV percorrera a costa Africana, no século XVI expandira-se ao Oriente, e entre os séculos XVII e XVIII desbravara, desenvolvera e investira no Brasil. Disseminada a teoria do Mare Liberum uma nova legalidade internacional afirma-se com base no ataque e na conquista, os novos potentados comerciais reivindicam o espaço outrora dominado por Portugal e Espanha, e, ao mesmo tempo, declina aquela que foi a “luz da cristandade”, nas palavras do historiador espanhol Marcelino Menéndez Pelayo, Portugal e Espanha foram evangelizadores de metade da orbe, o “martírio de hereges, luz de Trento e espada de Roma”, o que parece condizer com o sentimento fini secular de procurar uma grandeza perdida. O pessimismo goraria as expectativas, quer em Portugal com o ultimatum de 1890, quer em Espanha com a derrota de 1898.

A fase ultramarina portuguesa parecia envolver-se numa névoa – sem futuro à vista, condenada ao declínio, superada na história. Ensejo dramático, contudo, que não demoveu Sá da Bandeira, excepção ao pessimismo do século, o qual, ao longo da sua passagem pela administração do Ultramar, entre 1836 e 1870, visiona uma nova política colonial, assente nos princípios do humanismo cristão e persistente no realismo político. O marquês de Sá da Bandeira apoiou a inovação, legislando em matéria do trabalho rural e da administração pública. São estas medidas o exemplo da singularidade portuguesa que sintetizava a moral e ética cristã com os interesses do Estado, o respeito à justiça e à pessoa humana. Exemplarmente, no decreto de 3 de Novembro de 1856, garante a “todos os portugueses sem distinção de raça, cor ou crença religiosa, poderem dispor do seu próprio trabalho e da sua própria individualidade” e, por fim, manda abolir em Angola, o trabalho forçado.

Mas as reformas portuguesas, e as expedições saídas de Lisboa, coincidem com projectos igualmente ambiciosos da parte da Bélgica, da França e da Inglaterra. Entre 1853 e 1856, David Livingstone realiza as suas viagens à África Meridional, justificando com carácter missionário, cultural e científico. O missionário inglês descreve África “cruzada por largos rios com grandes lagos, e solo fértil que produzia excelente algodão, açúcar e outros produtos tropicais”. Fascinada,a Europa desencadeou uma nova política, uma “nova partilha de África”. A justificar invocavam a necessidade civilizacional, a pesada responsabilidade do homem europeu, e, da tese do Mare Liberum, de Grotius, afirmava-se a teoria anti-esclavagismo. Cada potência arrogava-se de uma responsabilidade de maior amplitude, e da justificação jurídica e filosófica, a missão civilizadora impunha-se agora pela força económica, militar e política.

Justificando a moral inglesa, Livingstone não poupa Portugal às mais infames críticas. Em resposta, José de Lacerda, expõe no seu livro o desmentido face às acusações tecidas contra Portugal. Os feitos de Livingstone, aplaudidos como se fossem os primeiros, não constituíam qualquer novidade. Muito antes daquele outros exploradores portugueses o haviam feito.

Basta atentar nas Cartas de Diogo Homem, de 1558, testemunhas do espírito aventureiro e científico do explorador português seiscentista. Confrontando as leitura das cartas do século XVI com as descobertas do missionário inglês, Livingstone não argumentara o número de dados que já havia do tempo das expedições portuguesas sobre as famosas fontes do Nilo. A insistência de José de Lacerda não esgota a impaciência que frustra um animado patriota ao descobrir a indiferença do seu povo. Trezentos anos antes das potências Europeias lançarem os seus aventureiros para cartografar, explorar, desbravar, estudar o interior africano, Portugal já tinha conhecimento dessas passagens, infelizmente não valorizando a importância.

Em jeito crítico Sebastião José Botelho referira muito antes: “Descobridores da costa das duas Áfricas, e de todo o Brasil, dominadores de quase todo o Malabar e ilhas adjacentes, foi tamanho nosso descuido, e he tão grande a mingoa de conhecimentos estatisticos, que nao temos huma planta geographica de cada um dos portos e, nem ao menos, uma planta geral de cada capityania.”

Claro, enumerando as excepções a esta fatalidade, não deixava a experiência do senhor Livingstone denotar sérias contradições (de acordo com Lacerda). Asseverava o missionário inglês que os factos que apresentava eram novos, verdadeiras revelações para o seu tempo, extraindo dali honra e glória, quando esses factos já eram conhecidos, ainda que (como denota o censor luso) não encontrem muito suporte em autoridade escrita.

Francisco José de Lacerda e Almeida, doutor em matemática e governador dos Rios de Sena fez, em 1798 uma viagem pelo interior de África, de Tete a Luanda, capital do Cazembe, onde morreu. Também Manuel Caetano Pereira, oriundo de Goa e morador dos Rios de Sena, igualmente viajou pelo interior africano e fora um dos informadores do Dr. Lacerda. Livingston vagamente faz referência a estes ilustres,enquanto ignora a expedição comandada pelos Majores Monteiro e Gamitto, entre 1831 e 1832. Conquanto as viagens destes intrépidos aventureiros tivessem vindo à estampa pelos anos de 1854. Por que não os cita Livingstone, afinal? Preferiu, pois, esconder a relevância da presença portuguesa.

Também Rodrigues Graça penetrara em Katanga, entre 1846 e 1847. Mais, entre 1852 e 1853 já Silva Porto se encontra no Bié e, mais tarde, no alto Zambeze, de onde, aliás, acolhe Livingstone e o recebe. Foi Silva Porto dos mais intrépidos exploradores africanos, aliando a coragem à vasta cultura. Como tal, não tem paralelo no seu tempo, os seus estudos, as suas conquistas, antecipam os mais insignes nomes estrangeiros, e faz de Portugal uma verdade façanha.

Acresce depois os nomes de Serpa Pinto, Hermegildo Capelo e Roberto Ivens, que estudam as ligações entre o Zambeze e o Zaire. Entre tantos outros que honraram o nome de Portugal.

Argumentava Livingstone que os portugueses, em nenhuma parte de África onde transitou, eram conhecidos, o que revela manifesta mentira. Várias provas contradizem esta afirmação. Na região do Zambeze, a palavra “Reza”, para designar a divindade, é perfeitamente compreendida, e o próprio Livingstone constatou que aqueles povos são muito propícios ao culto religioso. Pois todas as regiões do Zambeze, e outros territórios vizinhos, tinham sido visitadas pelos portugueses. No mais recôndito interior da África ocidental a palavra “Averie”, de origem católica, revela a presença antiga da doutrina católica, e denuncia a passagem de missionários portugueses, muito anteriores à chegada do Dr. Livingstone.

As constantes arguições de Lacerda desmentem o missionário inglês, por vezes contraditório, outras vezes apenas empossado de vaidade e glória pessoal. Tal como afirma que Chicova não é um reino, mas “um longo tracto de terra chã”. Quando o padre João dos Santos, no século XVI, descreve o “Reyno de Chicova”, no seu livro “Ethiopia oriental”, narrando a expedição de Francisco Barreto aos rios de Cuama para conquistar ali as minas de prata. A historiografia portuguesa do século XVI e ao longo do século XVII também o desmentem. Conquanto Livingstone refutasse a glória portuguesa nas terras africanas, a verdade permanece.

Daniel Sousa

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