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Sobre a suposta brutalidade dos portugueses no Índico

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A historiografia recente, concentrada que vem andando na constante perseguição e vilificação do passado português, usa frequentemente relatos de violências perpetradas por Portugal no Índico para a sua crítica do império. Episódios comummente citados são o bombardeamento de Calecute por Pedro Álvares Cabral após a chegada à Ásia da segunda Armada da Índia, ou o brutal ataque de Vasco da Gama, em 1502, ao grande navio árabe “Miri”. No primeiro caso, Álvares Cabral ordenou o bombardeamento intenso do grande porto indiano de Calecute e a destruição das muitas embarcações de comércio ali fundeadas. Os portugueses terão feito fogo de um dia inteiro sobre a cidade, cuja população foi forçada a fuga desordenada; terão, ainda, tomado, apresado e destruído todos os navios mercantes que encontraram no porto. Pela contabilização de Roger Crowley, historiador britânico especializado em assuntos navais, a armada portuguesa teria feito, só na investida contra os navios de comércio no porto, para cima de seiscentos mortos.

O caso do navio árabe “Miri” (em persa, “Comandante”, “Governador”), atribuído por Gaspar Correia e grande número de outras fontes a Vasco da Gama, é especialmente chocante. Tratava-se de grande navio muçulmano. Transportava coisa de trezentas pessoas de todas as condições, assim como rica carga, e devia dirigir-se a Meca ou ao Egipto quando Vasco da Gama o localizou e atacou. O navio rendeu-se prontamente e terá oferecido farto resgate a Gama. Este recusou-o repetidamente, mesmo quando as ofertas muçulmanas se tornaram desmedidamente generosas; depois, abandonou o Miri, a que fora para negociar, e ordenou que se fizesse fogo sobre a nave. A tripulação daquela pôde controlar os muitos fogos que nela deflagraram, seguindo-se depois batalha de vários dias. O Miri resistiu até ao limite das suas forças acabando por afundar-se apenas após terrível perseguição. A morte intencional, lenta e pelo fogo de centenas de civis corajosos chocou a tripulação portuguesa, abundando desta os relatos críticos da actuação do almirante. Um deles, e talvez o mais relevante, é o do próprio Correia em “Lendas da Índia”.

Sendo inquestionável que um e outro casos demonstram razoável dose de brutalidade, a sua análise racional convida-nos a conhecer a circunstância em que foram praticados. Portugal não chegara à Índia com o propósito inicial de fazer a guerra. A sua política fora, num primeiro momento, de comércio e aliança com aquilo que Lisboa esperava serem as potências cristãs da Índia. A estratégia portuguesa era de desviar o comércio oriental das mãos dos muçulmanos do Mediterrâneo; o que pretendiam era secar os cofres e do Islão, roubar-lhe a riqueza que usava para pagar o seu poder, abrir a Portugal as portas da Terra Santa e, assim fazendo, defender a Cristandade e engrandecer a monarquia. Com efeito, a primeira e terceiras armadas da Índia – a de Gama, que lá chegou em 1498, e a de Cabral, que chegou à costa indiana em 1501 – tinham tido ambas o objectivo de fazer do Samorim de Calecute um aliado. Gama, julgando então tratar-se o rei asiático de monarca cristão, levou-lhe presentes; Cabral, conhecendo o desinteresse do Samorim pela medíocre oferenda de Gama, embarcou em Lisboa prendas formidáveis com o intuito de conquistar a amizade daquele rei asiático. Os portugueses começaram, pois, por apresentar-se como amigos potenciais do Samorim, intenção que a escolha de Cabral, um diplomata sem especial experiência naval ou militar, como almirante sublinha.

Os planos portugueses para o Oriente alteraram-se rapidamente e, quase sempre, por motivos alheios ao seu controlo. O momento inaugurador da discórdia ocorreu em Calecute e na presença de Álvares Cabral. Aquele comandante, como vimos, fora enviado à Índia com a missão de fazer do Samorim amigo dos portugueses. Esse propósito saiu plenamente gorado. Manipulado, provavelmente, pela rica classe mercantil muçulmana residente naquele grande porto indiano, o Samorim dificultou o embarque da especiaria desejada por Cabral. Pior, os mercadores islâmicos terão, ao que parece, engendrado o ataque de multidão hindu à feitoria portuguesa existente na cidade desde a viagem de Vasco da Gama. A feitoria foi cercada e incendiada; uns setenta portugueses, entre os quais se incluiu o feitor, Aires Correia, acabaram brutalmente abatidos. O primeiro homem a fazer chegar a Lisboa notícia do Brasil, Pêro Vaz de Caminha, foi igualmente atacado e retalhado pela multidão enfurecida. O bombardeamento de Calecute, de que resultou a demolição de parte da cidade e a morte, só no porto, dos referidos seiscentos homens, foi resposta à agressão indiana – não constituiu, como vemos, acto de agressão.
A derrocada das relações entre Portugal e o primeiro potentado indiano que conheceu aprofundar-se-ia nas décadas seguintes. Desfeitos pelo massacre da feitoria portuguesa, a que Cabral replicou brutalmente ao destruir a fogo de canhão parte da cidade, os laços viram-se ainda mais danificados pela decisão do Samorim em perseguir os portugueses após a saída destes de Calecute. Nada conseguiram, pois a artilharia potente, melhores navios e tripulações experimentadas de Portugal impuseram, no recontro que se seguiu, respeito à armada do Samorim. Mas o ataque a Calecute, a que sucedeu, na segunda viagem de Gama ao Oriente, a carnificina no Miri, devem ser compreendidos como resposta indesejada a uma provocação que, em rigor, Portugal não pediu ou pretendeu. O Miri era propriedade de um tal Al Fanqi, rico mercador de Meca e feitor muçulmano de Calecute. O afundamento do navio foi represália pela investida do ano anterior à feitoria portuguesa na cidade indiana, recontro em que haviam caído Vaz de Caminha e setenta outros soldados de Portugal. Gama conhecia Al Fanqi, sabia-o um dos causadores da tragédia, dispôs-se a vingar-se e, com isso,a refazer a reputação de Portugal no Oriente. Se, pois, houve inversão de política – e se Lisboa passou, do plano comercial, a esboçar para a Índia verdadeiro projecto de conquista militar e assentamento imperial – tal deve-se muito mais a hostilidade local atiçada por mercadores islâmicos que à agressividade gratuita dos portugueses.

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